Pingado

    Entrou com a mesma pressa de todos os dias na padaria, atrasado, sem qualquer tempo a perder. Nem notou quando o balconista lhe deu bom dia, porque o relógio no pulso era mais importante e lhe dizia que tinha só cinco minutos até a reunião começar. Pediu um pingado e pão na chapa, olhou de novo o horário, um minuto a menos de folga.

    Sua sorte era que seu escritório era do outro lado da rua.

    O mesmo balconista lhe trouxe o pingado tampado para viagem, e ele foi logo saindo, dispensando o pão na chapa sem se dar conta. Três minutos faltando e ele resolveu atravessar a rua correndo. Não viu o motoqueiro, que o atingiu em cheio e o arremessou longe, destampando o pingado e espalhando o líquido pra tudo que foi lado. Caiu e bateu a cabeça, e nem a pressa, nem o atraso, nem nada (nunca) mais lhe passou pela mente.

    Deixou mulher e dois filhos.

    Tortilla

    De todas as características dela que alguém poderia se lembrar se perguntado, certamente a tremenda disciplina que ela tinha para fazer tudo em sua vida seria a mais citada.

    No entanto, Mônica se perguntava onde estava toda a disciplina de que ela precisava quando ia cozinhar. Simplesmente não tinha a menor noção de como fazer isso, por mais que fosse neta de uma das melhores cozinheiras que já tinham conhecido.

    Aliás, dona Alice fazia cada prato de dar água na boca de qualquer um. Sua mãe, Dalva, era outra que também se virava muito bem com as panelas, com os ingredientes, quaisquer que fossem eles. Das duas, só poderia se esperar mágica culinária. Mas seus respectivos talentos não tinham sido passados para ela.

    “Tudo bem, o delivery existe pra essas pessoas que nem eu, posso sempre pedir comida”, ela sempre pensou. E sempre pediu comida fora mesmo; conhecia até alguns entregadores da região pelo nome, tamanha a frequência com que fazia isso.

    Mas naquela noite era diferente. Nunca considerou que não saber cozinhar direito fosse questão de tamanha gravidade — questão de vida ou morte, até — na sua vida.

    Culpa do Rodrigo. Quando ele começou a trabalhar no mesmo time que ela, 3 meses atrás, achou ele maravilhosamente lindo, mas sabia que nunca teria nenhuma chance com ele, até o dia, no começo deste mês, em que ele e ela começaram a conversar no elevador do edifício do escritório. Desde então as conversas e os horários de ambos estavam cada vez mais sincronizados.

    E foi durante uma dessas conversas, segunda agora, que ele perguntou se ela gostaria de sair para jantar. Atônita, surpresa, quase gaguejando na verdade, Mônica aceitou o encontro, mas acabou dizendo que podiam se encontrar na casa dela mesmo, que ela faria o jantar pros dois.

    O elevador se abriu naquela hora e ele simplesmente disse que estava combinado, então. Cada um foi para o seu lado e ela achou a coisa muito romântica. Jantarzinho pra dois. Que romântico.

    Que romântico mesmo.

    Pra quem sabia cozinhar.

    E onde ela, totalmente o oposto de alguém assim, estava com a cabeça naquela hora, não é mesmo? Pensou em dizer pra irem jantar fora mesmo, em dar uma desculpa, mas desistiu. E a vergonha que passaria? Não senhor.

    Agora estava na cozinha. O caderno de receitas de dona Alice, daqueles encapados com plástico quadriculado e com as folhas até meio amareladas, já, escrito todo com caneta esferográfica, estava aberto na página onde tinha uma receita de tortilla de batata.

    Sendo alguém que adorava aquele prato de sua avó quando era criança, era natural para Mônica achar que repetir a receita por conta própria seria mais fácil. Memória afetiva pode ajudar, achava que tinha ouvido alguém dizer num desses reality shows culinários da TV.

    Ovo, cebola, cebolinha, pimenta do reino, sal, azeite. Tudo já batido e misturado — e quase não tinha feito sujeira no chão e na bancada enquanto preparava tudo. Um progresso! Agora, com a frigideira já aquecida, despejou a mistura e deixou tudo em fogo alto.

    Foi até a sala e pediu à Alexa que tocasse música romântica daquele cantor que ela sabia que Rodrigo e ela gostavam. Imaginou-se dançando com ele ali mesmo, os dois juntinhos.

    A campainha tocou. Com certeza era ele. Ela abriu a porta, deu-lhe um beijo no rosto e pegou a garrafa de vinho que ele trouxe. Pediu que ele esperasse no sofá, que ela já ia servir tudo. Afinal, a mesa estava posta desde que horas? 16:00?

    Queria muito que as coisas dessem certo com Rodrigo. Era tão gentil, bonito, inteligente. Mas sabia que tinha que ir com calma. Devagar. “Para chegar ao topo”, seu disciplinado eu interior lhe lembrou, “deve-se começar de baixo”.

    Como o fogo em que se devia cozinhar a tortilla, segundo sua avó Alice tinha escrito em seu caderninho. Detalhe que só agora ela tinha se dado conta de ter confundido. A tortilla dela estava à mercê do fogo alto.

    Mônica correu até a cozinha e fez com que Rodrigo, sobressaltado, se levantasse de onde estava e fosse atrás dela. Quando ele chegou à cozinha, se deparou com Mônica, que só faltava chorar sobre o leite derramado… ou sobre a tortilla queimada, mais exatamente.

    Desconsolada, ela olhou para Rodrigo tentando esconder sem sucesso o quanto estava envergonhada. Ele primeiro só a olhou. Depois abriu um sorriso que ela acompanhou, e que um segundo depois se transformou em gargalhadas.

    “Desculpa, na cozinha eu sou mais perdida que cego em tiroteio… como deu pra você perceber”.

    Naquela noite, acabaram comendo pizza mesmo. Pedida via delivery. Entregue rapidinho, aliás, pelo Marcelo, um de seus conhecidos que trabalhavam com entrega. E foi o melhor encontro da vida de Mônica, e de Rodrigo.


    Criei este texto como uma espécie de exercício de escrita a partir de 8 palavras aleatoriamente geradas via internet que eu destaquei em negrito para referência.

    Nunca fiz isso, e nunca compartilhei publicamente. Mas gostei do exercício, pois provoca a mente e a criatividade. Devo tentar repetir a dose regularmente.

    O seu Gilberto e a descarga de oxitocina

    Desde ontem de tarde estava sentindo uma dor nas costas muito ruim — daquelas capazes de fazer a gente se curvar enquanto anda, difícil mesmo de suportar. Como depois de tomar remédios ela não passava por nada, hoje cedo avisei ao chefe e fui para um hospital e pronto-socorro ortopédico que temos aqui na cidade.

    O lugar existe há anos, e é muito bom (não estou fazendo propaganda dele nem nada, e por isso mesmo vou omitir o nome). Mas o fato é que isso faz com que o estacionamento de lá, com apenas 5 vagas, e também todo o entorno, estejam sempre lotados, transformando o simples ato de estacionar o carro num belo exercício de paciência.

    Depois de vários minutos, encontrei uma vaga no sistema de zona azul da cidade. Como sempre faço, saquei o celular, entrei no aplicativo, ativei o meu tíquete e fui-me embora para passar pelo pronto atendimento. Um diagnóstico — problema com o bendito nervo ciático —, duas injeções de relaxante muscular e uma receita com medicamentos complementares para tomar em casa depois, volto para onde estacionei o carro, desativo o alarme e estou me acomodando pra fechar a porta quando noto um senhor do lado do parquímetro da zona azul — um totem que é a versão analógica do aplicativo que eu sempre uso —, meio atrapalhado com o parquímetro e com o celular.

    Estou prestes a ligar o carro e sair da minha vaga quando ele olha pra mim e pergunta se eu sei usar a zona azul. O aplicativo. Eu respondo que sim e ele me diz que o parquímetro está quebrado, e que já está ali há uns bons 15 minutos tentando baixar o app pelo QR Code que está impresso no totem, e nada. E ele precisa ir resolver um assunto ali por perto e já está atrasado.

    Pasmem! O bendito do totem da zona azul, vejam só, não tem instruções detalhadas e embora para mim e para você possa ser trivial e banal apontar a câmera do celular para abrir o link de download, para ele não era. Ainda com a minha dor no ciático — o enfermeiro que me aplicou as injeções me prometeu que em 40 minutos no máximo os efeitos milagrosos muito esperados delas começariam —, saí do carro e fui ajudar o senhor.

    Expliquei que ele devia abrir a câmera do celular dele, apontar para o QR code e que, quando surgisse um endereço na tela — o link — era pra ele tocar ali e isso abriria o Google Play (ele estava com um aparelho Android). Depois que o aplicativo abriu na loja, expliquei como instalar. Tudo correu bem e depois de alguns segundos o app da zona azul aqui da cidade estava aberto.

    “Agora é só o senhor se cadastrar no aplicativo. Depois cadastrar o seu carro e o cartão do banco do senhor. Daí vai poder ativar o tíquete de estacionamento”.

    Ele me fez aquele verdadeiro olhar de “como faço isso”. E eu, é claro, expliquei pra ele. Toca aqui, toca ali, digita isso, digita aquilo, até que ele me pede pra pegar o celular dele e ajudar. E foi o que eu fiz. Nome, e-mail e mais algumas informações depois, cadastro pronto. Na hora de criar uma senha e informar o cartão, validade, código de segurança, devolvi o aparelho pra ele, mas expliquei que número ia onde. E aos pouquinhos, passo a passo, ele finalmente conseguiu inserir o cartão e comprar créditos pra estacionar.

    Ativou o tíquete da zona azul, bem a tempo, pois o carro da fiscalização estava passando por ali.

    “Como é o seu nome?”, ele me perguntou.

    “É Daniel”.

    “O meu é Gilberto, Daniel. Muito obrigado pelo tempo e pela paciência de me ensinar. Deus te abençoe, viu?”, foi o que eu escutei.

    E ainda recebi uma ajuda dele, que parou os carros na estreita avenida onde a gente estava, pra que eu, já de volta ao meu carro, pudesse sair da minha vaga e ir pra casa, com as injeções já começando a dar um certo alívio ao meu pobre nervo ciático.

    Mas eu acho que não foram só as injeções que aliviaram a minha dor.

    É que isso que me aconteceu hoje me lembrou de um resumo do livro Líderes se servem por último, do Simon Sinek, que eu li recentemente. No livro ele explica que existem quatro hormônios que controlam nossas emoções e comportamentos:

    Dopamina: hormônio que nos ajudar a realizar coisas; Endorfina: hormônio que mascara a dor; Serotonina: hormônio da liderança; e Oxitocina: hormônio do amor. A serotonina e a oxitocina são os chamados hormônios altruístas, que afetam nossas vidas sociais e nos ajudam nos relacionamentos interpessoais, contribuindo para que se crie mais empatia entre as pessoas. Mas eles somente são ativados se você decide interagir com as pessoas.

    A oxitocina, na qual vou me concentrar, aliás, é o mesmo hormônio que é liberado pelas mulheres durante o nascimento de um filho, e que é capaz de fazer a mulher amar seu bebê mesmo em meio as dores do parto.

    Quando ela é liberada nas pessoas comuns, no dia-a-dia, a oxitocina proporciona sentimentos de felicidade, amabilidade e agradecimento. O hormônio é capaz de melhorar o nosso humor, diminuir nossa ansiedade, aumentar nosso bem estar e também melhorar a depressão.

    E o que é melhor: a oxitocina é super fácil de ser liberada no nosso organismo. Basta doar um pouquinho do nosso tempo e energia, praticando um ato de altruísmo desinteressado ao próximo, como por exemplo, ajudar a pessoa em necessidade que te pergunta, quando você entra na farmácia, se pode comprar uma lata de leite em pó pra que ela consiga alimentar a filha (o que também já me aconteceu), ou ajudar alguém que não tem muita intimidade com tecnologia, como o seu Gilberto, a baixar o aplicativo da zona azul, ensinando ele a usar depois — e você faz essas coisas, sem esperar nada em troca.

    Ou seja, essa ajuda ao seu Gilberto me fez experimentar uma descarga de oxitocina. Foi uma sensação muito boa, que me deixou realmente comovido e me sentindo feliz comigo mesmo e com a vida.

    Moral da história? Quando um seu Gilberto precisar de ajuda com um aplicativo porque o parquímetro quebrou, ou uma dona Marta precisar de ajuda para carregar as compras, doe uns minutinhos seus e ajude. Garanto que o resultado é melhor do que qualquer remédio da farmácia e, caso você esteja num dia particularmente triste, sentindo dor ou meio deprimido, isso será quase que literalmente um santo remédio.